domingo, 26 de outubro de 2008

Eryk Rocha

Rocha que Voa opera com a limpeza da fala de Glauber e um discurso visual nítido, propositadamente embaçado. Como você chegou a este formato?
Eryk Rocha - As gravações das entrevistas de Glauber à rádio cubana só foram inseridas no filme depois da montagem, no Rio. No início, a idéia era fazer um filme biográfico, anedótico, realista, ligado ao cinema-verdade. Felizmente, isto não ocorreu. O novo formato apareceu em meu retorno ao Brasil, depois de seis anos entre Venezuela, Colômbia e Cuba. Percebi o abismo do Brasil em relação ao continente, e vice-versa. O filme funciona como um grão de arroz na tentativa de reconstruir o diálogo latino-americano. Fizemos o que queríamos com a linguagem do filme. Não concedemos.
Em Rocha que Voa você busca a imagem de seu pai, mas não só. Glauber contestou o cinema tradicional e você condena a tendência de filmar a partir de padrões americanos e televisivos.
Rocha - Rocha que Voa veio para desorganizar, para abrir um debate estético e cultural sobre o papel do cinema. É uma busca pelo pai, mas também pelo país, por minha identidade latino-americana. Murilo Mendes diz que a memória é uma construção do futuro, e o filme caminha nesta direção. Há nele a memória particular, do meu pai, a coletiva, do continente latino-americano, e a cinematográfica, do Cinema Novo, uma referência importante com a qual temos de dialogar. Na montagem do filme e na montagem interna dos planos, há uma sobreposição de memórias. O filme traz a imagem concreta, de arquivo, dos anos 60, e a abstrata, imprecisa, que é minha, porque eu não vivi aquela época. Perdeu-se no cinema o olhar do autor, que potencializa o conteúdo do filme. Rocha que Voa é um trabalho pessoal.
Seu filme sugere que a fala de Glauber, de 30 anos, vale hoje. A integração latino-americana, como ele pregava, não ocorreu. E o cinema, como linguagem, abraçou a popularização que o empobrece.
Rocha - Preocupado em conquistar o grande público, o cinema se aproximou demais da linguagem da televisão. Os atores viraram globais - eles são "marcas" para que o filme tenha público e capte dinheiro. Mas eu acredito no cinema como um espaço sagrado de reflexão, uma atividade que não pode se banalizar, um patrimônio público. Não devemos fazer o que a televisão faz, porque ela é um outro meio, tem um outro valor. Muitos dos filmes feitos hoje são televisões ampliadas. O problema não é o cinema comercial, ele sempre vai existir e é importante para a indústria. O problema é a ausência de espaços para o cinema experimental. Hélio Oiticica dizia, num texto que parece escrito hoje, que "experimental" é a condição do Brasil. Atualmente há uma quantidade de filmes bem acabados, de excelente patamar técnico, com os quais nós não podemos nos contentar. Sem conflito, sem debate, o cinema não evolui. Buscar este debate é o desafio da minha geração.
Quem faz cinema experimental no Brasil?
Rocha - Poucos. O Sertão das Memórias, ficção de José Araújo, é um filme belíssimo neste sentido, assim como O Fim do Sem Fim, documentário de Lucas Bambozzi, Belo Magalhães e Cao Guimarães, longa em 35mm que nem chegou ao circuito. Lavoura Arcaica, de Luiz Fernando Carvalho, é audaz. O Invasor, de Beto Brant, concilia o modelo clássico de narrativa com uma história ágil, contemporânea - e desloca o bandido do gueto, enquanto há um subcinema, uma subvertente dentro do cinema hegemônico, que se glorifica estetizando a miséria e a pobreza, promovendo um exotismo da violência (não vou citar um filme em particular). O cinema-verdade, tanto no documentário quanto na ficção, é hegemônico, representa o pensamento único da globalização. Dizem que o cinema autoral, de pensamento, não dá público. É mentira. O público não vê este cinema porque ele não chega até o público. O Brasil é um país diverso e precisa ter uma diversidade de filmes.
Miguel Vasilskis - É assustador ver como o cinema vai ficando padronizado no país. Os diretores acham que, apostando na linguagem comercial, vão conseguir um mercado. O mercado no Brasil não existe ou é insignificante em relação ao número de habitantes. O Brasil é o império da Rede Globo e das televisões. Ir para o mercado externo também não dá: das dez obras filmadas no mundo, nove ficam no armário. Se é para fazer o que é feito melhor em outros países, nós sempre vamos ficar para trás.
Ao retornar de Havana, como você percebeu as diferenças entre o que se produz lá e aqui?
Rocha - Cuba chegou a produzir 15 filmes por ano. Hoje, depois da queda do bloco do campo socialista, são dois, ainda assim em co-produção com a Espanha. Os cubanos discutem cinema, e fazem isto em meu filme, porque têm uma tradição cinematográfica rica. No Brasil, pelo contrário, a produção cinematográfica se tornou grande, mas mecânica. Filma-se de forma compulsiva, sem se perguntar por quê.
Este embaçamento utilizado como recurso visual no filme não parece ser algo tão estranho assim. Mesmo a MTV exibe videoclips em que a imagem do cantor aparece desfocada em primeiro plano. Vocês identificam um movimento de absorção de suas idéias?
Vasilskis - O processo de criação visual do filme partiu de uma idéia do Eryk, de tornar a imagem do ano 2000 semelhante à dos anos 60. Entrou aí o uso da película em preto e branco granulada, já com o fungo incluído no nosso filme, vencido. Esta foi a maneira que encontramos para transpor a idéia de Eryk, mas, também, o recurso que tínhamos para trabalhar. A melhor maneira de anular um movimento não é combatê-lo, é absorvê-lo. A plástica sem sentido é só a plástica, é a cosmética das idéias.
Rocha - Nós incorporamos as limitações técnicas, os acasos, ao filme. Nossa película em preto e branco é vencida. Mas a grande pergunta que o filme suscita é: estas idéias estão vencidas? Há desfocados e desfocados. A técnica desfocada, abstrata, de Rocha que Voa, funda-se num projeto estético, de modo a potencializar o assunto do filme. Trabalhamos com tudo, 16mm, betacam, high-8, digital, material de arquivo em 35mm telecinado. Não cremos no diretorzinho que vem com monitorzinho para filmar. O documentário pede um cineasta do corpo. Tem de sentir a parada lá. Fizemos um roteiro de 50 situações e nos propusemos o ritual de filmar as seqüências, porque os cineastas estavam morrendo, como todos morrem, a arquitetura ruía, a cidade de Havana estava acabando.
Quais são os seus novos projetos?
Vou trabalhar sobre a obra da documentarista cubana Sara Gómez no ano que vem. Mas, na próxima semana, iniciamos no Rio um documentário sobre o imaginário político brasileiro. Entendemos o Rio como o Brasil porque a cidade tem esta tradição de antiga capital federal e porque ela é o que os recursos nos possibilitam. A idéia é fazer um contraponto à visão oficial dos candidatos à presidência. Não vamos entrevistá-los. O filme vai partir do pressuposto de que o Brasil percebe a necessidade de mudança e, ao mesmo tempo, é indiferente diante da mudança que a política oferecerá. Faremos pesquisa formal, poética, estética, em busca da forma visual. Quero continuar trabalhando com texturas, com diferentes qualidades de imagem.

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